segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Feirantes

"Está calado e vai vender couves para a feira"
Garota da Guia, 1999
Bom dia,

Uma coisa que me aconteceu depois das minha férias na clínica foi que não consigo fazer nada sem pensar imenso primeiro. Um medo gigante de ter um comportamento parvo que vai fazer as pessoas terem pena de mim e pensarem, "é normal ele ser assim... depois do acidente não podíamos esperar que ele voltasse completamente ao que era". O medo de não medir bem uma frase que diga e acabar por ficar embaraçado. O medo de dar a entender a uma mulher que tenho interesse nela quando só a achei divertida e gosto de ter pessoas que me fazem rir à minha volta e principalmente o medo de contar uma história que é mal interpretada e as pessoas ficam a pensar mal de mim só porque não escolhi as palavras certas.

Embora este "pensar antes de fazer" seja algo que muita gente devia fazer muito mais, acaba por ser um pequeno entrave ao comportamento de uma pessoa. Vai haver mil coisas que ficam por dizer, abraços que ficam por dar, prendas por oferecer, elogios que ficam por dizer... deixa-me um bocadinho triste mas parece-me que é o comportamento normal das pessoas neste mundo por isso mais vale seguir a regra.

A linha de pensamento que o titanium me trouxe é a seguinte. Será que alguma vez fiz um elogio assim ou mandei uma boca parecida antes? Se sim, será que não fiquei envergonhado depois de o dizer? Caso até aqui não tenha chegado a nenhuma conclusão vem o último pensamento, será que a pessoa ao meu lado o diria? E esta é a pergunta que leva à parte fascinante da história e também ao título deste post.

Como muita gente sabe, na minha infância ia com os meus pais vender maçãs e alfaces para o mercado da Guia. Ter de acordar super cedo era super chato mas depois o mercado em si até era engraçado e acabou por me fazer aprender imenso. A primeira coisa que tirei dos mercados foi aprender a fazer contas de cabeça bastante rápido (na altura ainda não havia balanças com memórias, tudo contas à mão), habituei-me a guardar duas ou três contas na cabeça ao mesmo tempo (não temos filas para as caixas como no Continente e quando as senhoras começam a gritar temos que as atender depressa e várias ao mesmo tempo) e muito melhor que isto, aprendi a falar para as pessoas.

Num mercado, as pessoas não vão estar 40 minutos no meio dos corredores sem falar com ninguém para trocar 2 minutos de conversa com o caixa 
 - "xx euros. Tem cartão Continente?" 
- "Não". 
Dinheiro passa de uma mão para a outra. 
- "Aqui tem o seu troco, obrigado"
- "Obrigado",
mas passam 20 minutos na banca a falar sobre todo o tipo de coisas que viram ou lhes aconteceu durante a semana enquanto escolhem as nêsperas e depois há que ter em conta a relação cliente-vendedor. O vendedor tem de fazer o cliente sentir-se bem, ficar triste no dia em que os emigrantes saem de Portugal e ficar contente quando estão a fazer compras para um pique-nique de família (e às vezes ter de trocar de papel de um minuto para o outro). Também há os clientes habituais dos quais conhecemos as histórias e manias e temos de nos portar de acordo. Desde o homem que traz uma anedota nova todas as semanas e quer ouvir uma em troca, as senhoras que (pensam que) são mais importantes e querem ser atendidas mais rápido que toda a gente, os recém casadas que acabam sempre a falar com a minha mãe sobre as diferenças na nova vida, as pessoas que sabem um bocadinho de matemática e querem saber o que tenho andado a fazer (é só uma pessoa) e as que querem ouvir as minhas histórias de estar no estrangeiro...

Um monte de conversas que temos de medir bem antes de ter e embora passado algum tempo os clientes passem a ser conhecidos ou até amigos com quem vamos beber um café (ou convidamos para um jantar onde acaba toda a gente com os copos), há sempre as primeiras impressões onde temos de medir o que é que o cliente espera. Os novos clientes que vêm o processo como chegar, comprar e ir embora e tenhamos que falar de trivialidades (porque nunca é suposto estarmos calados) mas acabamos por não falar de nada pessoal, os clientes que gostam de se rir um bocadinho e no início temos de avaliar qual é o tipo de humor que devemos usar, que piadas sobre o governo ou a religião podemos fazer... todos estes pequenos detalhes sobre as pessoas e a vida delas que temos de compreender para as convencer que vale a pena comprar as nossas bananas.

Mesmo tendo demorado imenso tempo a reparar que o andava a fazer, passei a usar o mesmo método para toda a gente na minha vida. Dividi todos os meus conhecidos em pequenas áreas de acordo com como me posso portar com elas, mas como não as vou tentar convencer a comprar-me pepinos, divido também no que espero em troca e como tenho de ser para o conseguir. 

Dito assim até parece uma coisa um bocado má, quase que parece que tenho indícios de sociopatia. Mas por outro lado esta preocupação de seguir estas regras faz também com que pense imenso nos elogios que vou dar, na prenda certa para deixar as pessoas mais importantes para mim mais felizes e nas novidades que posso contar a cada pessoa para as fazer pensar "estou espantado, para alguém que passou pelos problemas que ele passou nunca esperei que chegasse tão longe".

Faz-me feliz ver que agora começa de novo a correr bem e faz-me ter orgulho em ter sido feirante por tudo o que isso me trouxe. Mas agora vem a parte triste da história... seguir estas "regras" faz-me pensar que me estou a afastar das pessoas. Só mostro a parte que quero a cada pessoa mas ninguém me vê como sou na realidade... e este problema tem me feito pensar imenso nas últimas semanas. Será que vale realmente a pena ser assim? Será que não era melhor ser mais aberto com toda a gente? 

É que eu era assim antes de ser cliente das terapeutas do Rehabilitation Hospital ali ao fundo da rua, depois, durante algum tempo dizia tudo o que pensava a toda a gente, passei pela fase de semi-deprimido em que não dizia nada a ninguém e agora, porque o cérebro é um sacana com um sentido de humor fodido, voltei ao que era. E tenho que acrescentar que durante o bocado que falava demais, estava convencido que o acidente me tinha tornado numa melhor pessoa. 

Voltar a ser como era fez-me um bocado de confusão. Será que estou muito melhor? Eu sinto que sim mas será que preciso de ser este feirante para estar bem? E agora vem o "silver lining" desta história, embora me parecesse que me estava a aparecer uma má faceta, na realidade só estava a voltar a ser uma pessoa normal nesta nossa sociedade... Foi preciso parar de me preocupar tanto comigo e ver os comportamentos de outras pessoas, pensar em histórias antigas e, sendo menos egocêntrico, olhar  também como toda a gente se portou nalgumas situações para reparar que, de uma forma ou de outra, somos todos feirantes e todos acabamos por seguir estes princípios... vender melões só me ajudou a ser um bocadinho melhor.

Um abraço,

PS: embora ela seja amiga de amigos e provavelmente nunca vá ler este post, ele é dedicado à garota da Guia.